
Olívia Santana:
Ex-secretária de Educação analisa lei de ensino sobre a África e povos indígenas nas escolas
Jaqueline Barreto
Militante histórica das causas negras e até bem pouco tempo secretária Municipal de Educação de Salvador, Maria Olívia Santana - “A negona da cidade” - atualmente atua atualmente como vereadora (PC do B) e integra o Fórum das Mulheres Negras e o Conselho de Promoção da Igualdade Racial. Filha de uma empregada doméstica com um marceneiro, ela nasceu em uma família pobre, na invasão de Ondina, onde teve uma infância de carência extrema.
Começou a trabalhar como faxineira, aos 14 anos, em uma escola para auxiliar no orçamento familiar. Sua história sofreu a primeira grande mudança em 1987, quando passou no vestibular da Universidade Federal da Bahia (UFBA) para pedagogia e deixou o emprego de faxineira do Colégio Universo do Guri para dedicar-se aos estudos. Já na graduação, ingressou no movimento estudantil através de inserções no diretório de educação e no Diretório Central dos Estudantes da UFBA.
Em homenagem ao mês da Consciência Negra (Novembro Negro), discorre sobre a importância da implementação da antiga lei 10.639/03 ( atual 11.645) que torna obrigatório o ensino sobre a história africana e indígena nas escolas públicas e privadas brasileiras, mas ainda é uma realidade distante de muitos estudantes da capital baiana.
Jaqueline Barreto - A lei 10.639, que prevê o ensino da história africana e afro-brasileira nas escolas, funciona como um contraponto a uma historiografia marcada pelo etnocentrismo no Brasil?
Olívia Santana - A lei 10.639 é uma conquista do movimento negro. Foi uma lei sancionada pelo presidente Lula em 2003. E que eu tive a felicidade de implementar em Salvador em 2005, quando fui secretária de Educação (ela deixou o cargo em 2007 porque seu partido, o PC do B, rompeu a aliança com o prefeito peemedebista João Henrique Carneiro). Na verdade, representa o desafio de reeducar toda a sociedade e não, apenas os negros, para que se conheça a verdadeira trajetória dos povos negros na construção da sociedade brasileira. É uma lei de ressocialização da nossa sociedade soteropolitana e brasileira.
Jaqueline Barreto - Como você avalia a implementação da lei no país?
Olívia Santana - Ainda precisa um investimento maior, por parte do Ministério da Educação, no que diz respeito à implementação da lei 10.639. A gente precisa de uma ação mais arrojada do MEC (Ministério da Educação), no sentido de prover material didático que possa alicerçar a prática educacional. É necessário que a lei entre na agenda política sindical. Os sindicatos dos educadores precisam também incorporar melhor essa bandeira. Esse é um movimento que não tem volta. A roda da história tem que mover no sentido de superar os preconceitos e as discriminações, a fim de garantir uma educação favorável à promoção da igualdade.
Jaqueline Barreto - Quais as principais dificuldades para a implementação da lei?
Olívia Santana - A formação do educador é o problema mais estratégico. Nós estamos com educadores que tiveram uma formação totalmente contrária ao que a gente quer que eles ensinem agora. Trabalhar com a lei significa mexer com a mentalidade, significa garantir que os professores estejam abertos a mudar a sua forma de pensar o negro na sociedade brasileira. E isso só se faz com investimento maciço em formação profissional.
Jaqueline Barreto - Se nós tivéssemos uma história norteada pelo paradigma da diversidade cultural, seria mais fácil lutarmos contra a exclusão social e os antagonismos que perpassam a sociedade brasileira?
Olívia Santana - Com certeza, sim. Mas não é isso que nós temos. A nossa situação é totalmente contrária. Nós tivemos uma sociedade marcada pelo colonialismo, pelo escravismo. O Brasil é um país jovem, com 507 anos constituídos enquanto Brasil. Um país que foi, e é, fruto dos massacres dos povos originais, chamados de povos indígenas. Um país que se fez pilhando parte das populações africanas, das mais diversas partes daquele continente. Então, um país que tem tudo isso em sua gênese, obviamente, vai ter perturbações no seu presente. Nós precisamos acertar as contas com nossa história.
Jaqueline Barreto - Como se dá a relação entre racismo e ambiente escolar?
Olívia Santana - Na verdade, o racismo contamina todo o ambiente escolar: as relações entre professor-aluno, professor-aluno-funcionário, direção-professor-aluno-funcionário. A gente precisa de um gestor que comande uma política de promoção da igualdade racial. Tanto o secretário do município, Ney Campelo, como o secretário Ademir Sales, têm elementos importantes de abertura em relação a essa temática. Agora, é preciso que ocorram investimentos orçamentários, vontade política para mover projetos de mudança estrutural na educação. Pois, só assim, podemos debelar a chaga do racismo.
Jaqueline Barreto - O que o professor pode fazer para reverter esse quadro na sua escola?
Olívia Santana - É preciso repensar todo o ambiente escolar e avaliarmos a maneira como um professor olha um aluno negro, como trata esse aluno negro. Precisamos parar também com a violência simbólica de negar a história. Parar com a violência simbólica no momento em que faz um afago a um aluno branco e é incapaz de fazer um elogio a um aluno negro; que diz que uma menina branca é princesa, é anjo, e trata uma menina negra com omissão, silêncio. Parar de servir apenas como reforço de apelidos impertinentes e desqualificantes e de alimentar nela o desejo de exercer uma profissão de baixo prestígio social. Isso tudo colabora para a internalização do racismo.
Jaqueline Barreto - O racismo facilita o processo de evasão escolar dos estudantes negros?
Olívia Santana - É lógico que o racismo é um componente para a geração de notas baixas e evasão escolar. Fica aqui o desafio de realização de uma pesquisa sobre o peso do racismo na evasão escolar, sobre como ele faz com que o aluno negro não se sinta confortável na escola.
Jaqueline Barreto- Como o racismo se manifesta na escola?
Olívia Santana - Um exemplo é o jovem que é do candomblé e não pode se assumir como tal, por ser geralmente objeto de críticas e de brincadeiras desagradáveis, e tem um professor que é evangélico e fica querendo convertê- lo. Eu sempre digo que a escola é laica, porque o Estado brasileiro é laico. Portanto, temos que reproduzir essa relação, pois o respeito às religiões significa assinar embaixo da Constituição Federal. E a Constituição é um fato, é algo que rege e orienta as ações dos funcionários públicos como os professores da rede pública. Eles devem entender que, quando entram nas escolas, precisam deixar a Bíblia do lado de fora, porque a escola é o lugar onde ele vai realizar o ato de instruir os seus alunos e não, fazer catequese recebendo mensalmente um salário. A catequese a gente faz na igreja, no nosso templo religioso, e não, no ambiente da escola.